Relatos

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Local: São Paulo, Argentina

Rafael Mafra

quinta-feira, abril 20, 2006

II

Estava apenas lendo, tomando cerveja do lado de fora, frio, do bar, pois não havia lugar dentro. No primeiro cigarro apareceu a mulher. Estava dentro, no balcão, exibindo seu corpo e olhando vez ou outra ali pra fora. Mal chamou a atenção além disso tudo até a hora em que veio até a minha mesa: "Lendo um livro, hein?" ela disse. Senti vontade de responder com a brutalidade que esse tipo de comentário merece, mas me contive: "Senta aí.". Sentou-se. Continuei lendo. Fez menção de perguntar alguma coisa sobre o autor, mas interrompi informando o preço: "Oitenta reais!". Ela disse que eu estava supervalorizando o produto, ou alguma coisa assim e saiu. Estava claro que era uma brincadeira, mas creio até que estava cobrando barato. Antes dela ir embora ainda falei algo como: "Já que você não sabe mesmo o que está perdendo, volte pra sua vida de merda!". Ela saiu irritada e eu nem ligando pra isso.

Estava cansado. Tinha trabalhado o dia inteiro e depois andado uns quatro quilômetros pra chegar naquele bar e ler algumas páginas sossegado. Não havia espaço para conversas prostitutas.

Andei esses quilômetros não por necessidade, mas por vontade. Meus pés começaram a doer nas primeiras centenas de metros por causa do sapato novo que eu estava usando, mas continuei mesmo assim. O som no toca-fitas estava legal.

A mulher foi embora e eu continuei lendo com cerveja. Acho que preciso me alimentar melhor, essas coisas já estão fazendo efeito antes da terceira garrafa. Parei, paguei, vesti uma blusa que estava na mochila. Meus braços já estavam ficando azuis por causa frio. Desci a rua livre mais conhecida, porém não a melhor, da cidade ouvindo mais música. Durante o caminho, antes de atravessar uma rua, dessas super lotadas, me distraí com o tipo de gorro que uns caras barbudos usavam. Eram uns três e uma mulher que também parecia ter barba. O gorro era desses que os padres usam, não sei ao certo. Todos de preto. Enquanto olhava, meio que encantado e curioso e com raiva daquelas cabeças, passou do nosso lado uma viatura de polícia, fazendo alarde no trânsito. Parou tudo. A mulher barbada já estava estranhando minha atenção na cabeça dos desgraçados e a sirene tocando e aumentando a confusão naquele trânsito que de maneira alguma precisava disso. Eu só queria atravessar, porra! E a mulher me olhando e a sirene tocando... Atravessei a desgraça da rua naquela confusão mesmo. Desci mais e a confusão era a mesma. E eu segui ouvindo um som por entre os carros...

I

Deixei pra trás, naquele quarto, todas as evidências da tuberculose e, talvez, algumas coisas mais. Vasculhei tudo antes de sair, não queria esquecer nada. Mas hoje em dia é tão difícil não esquecer nada... temos que nos preocupar com todos os cartões e seus comprovantes de pagamento. Eu sempre esqueço no quarto o comprovante de pagamento do cartão de crédito. Dizem que podem usá-lo contra o próprio dono, até me preocupo com isso, mas sempre esqueço...

Saí dali como se estivesse com os pés na cabeça, e a cada passo eu sentia bater na cuca o asfalto podre das ruas por onde passava. No meio do caminho até tentei um suco natural, pra ver se ajudava um pouco o meu corpo. De nada serviu, inútil, a não ser ao banho que servi a uma das latrinas quietas do ambiente onde trabalho. Transformei aquele banheiro limpo num banheiro de bar, abraçado à sujeira e depois deitado no solícito chão. Levantei cambaleando ainda e encarei meus olhos no grande espelho da parede: "Vamos! Levanta! Olha pra você... já está de pé e nem percebe! E a dor de cabeça? Ah, a dor de cabeça! Pega um comprimido, toma. A água da torneira serve. Levanta. Lábios encarnados. Olhos raiados por riscos vermelhos. Seca essa água escorrendo pela tua face. Desce, volta ao trabalho, vai...

No almoço, a comida demorou a entrar boca abaixo. Tive de botar pra fora todos os litros d'água ingeridos pela manhã. Comi com calma um quarto de prato e um pedaço de doce qualquer. Puro desperdício, deixei quase tudo intacto sobre a mesa do restaurante. Na volta, apesar de me sentir melhor, não pude esperar nem a metade do caminho. Mandei tudo ao chão ali mesmo, na rua, em frente a uma loja de animais. Puro desperdício...